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Israel: ruptura e resistência democrática

/ Transmissão online - via Zoom


A atual crise-político institucional que vive Israel – originada na tentativa do governo de extrema direita liderado por Bibi Netanyahu de reduzir os poderes da Suprema Corte de Israel – expressa dois desafios profundos e inter-relacionados, que são produto de um longo processo histórico e que a sociedade israelense terá de enfrentar: o primeiro é a relação entre estado democrático e religião; o segundo entre democracia e a ocupação dos territórios palestinos.

“A curto prazo, o mais provável é que a Suprema Corte de Israel considere que a reforma judicial proposta pelo Knesset (Parlamento) é inaceitável, o que abriria uma crise entre os poderes. Também é possível que o Parlamento ou o governo desistam da reforma. Mas as razões de fundo da atual crise não vão desaparecer e precisarão ser enfrentadas, mais cedo ou mais tarde”, afirmou o sociólogo Bernardo Sorj, neste webinar realizado pela Fundação FHC e pelo Instituto Brasil-Israel.

“Israel está hoje em uma encruzilhada política como jamais aconteceu desde a independência em 1948. O que está em jogo é se o país continuará sendo uma democracia liberal, ainda que com importantes questões a enfrentar, ou se transformará em uma democracia iliberal, como está ocorrendo na Turquia, na Hungria e na Polônia. A polarização política é cada vez maior, estimulada pelo primeiro-ministro Netanyahu, e pode resultar em enfrentamentos violentos entre grupos sociais que se veem cada vez mais como inimigos”, disse a jornalista Daniela Kresch, correspondente de diversos meios no Oriente Médio desde 2003.

“Podemos identificar no atual conflito em Israel uma das características do populismo de extrema direita, em que um líder político poderoso e orgulhoso busca limitar os poderes do Poder Judiciário sob o argumento de que ele o impede de fazer o que tem que ser feito em benefício das pessoas”, explicou o professor norte-americano Benjamin R. Teitelbaum, que há anos vem estudando o fenômeno da extrema direita no mundo.

Indiciado por corrupção, Bibi se aliou à extrema direita para voltar
ao poder e quer controlar Judiciário

Segundo os palestrantes, a crise político-institucional que tem levado centenas de milhares de pessoas às ruas nos últimos nove meses, semanalmente, tem alguns aspectos conjunturais e outros, mais permanentes, fruto de conflitos internos da sociedade israelense que vêm se agudizando e não têm solução à vista.

Do ponto de vista conjuntural, o que explica a crescente radicalização política é o desejo de Bibi Netanyahu, que já havia governado o país por 15 anos (de 1996 a 1999 e de 2009 a 2021), de voltar ao poder no ano passado, após ter sido alijado do cargo de primeiro ministro um ano antes por uma coalizão heterogênea de partidos e líderes que iam da esquerda à direita, com uma coisa em comum: a insatisfação com sua liderança personalista e pouco confiável.

“Sob pressão por estar sendo processado em vários casos de corrupção e fraude, e devido à sua ânsia de voltar ao poder a qualquer custo, Bibi se aliou no ano passado a três partidos de extrema direita que até pouco tempo eram considerados marginais, junto com partidos ultraortodoxos, agraciados em suas demandas relacionadas à religião. Foi a forma que ele encontrou para obter maioria no Knesset nas eleições de novembro último, pois os demais partidos, da esquerda à direita, já não confiam nele e se recusam a apoiá-lo. Desde então, a polarização só tem crescido em Israel”, relatou Daniela Kresch.

Em janeiro de 2023, o ministro da Justiça, Yariv Levin, revelou um plano governamental para uma revisão legislativa do sistema judicial israelense, cujo objetivo principal é enfraquecer a Suprema Corte de Israel, concedendo ao governo controle efetivo sobre o Comitê de Seleção Judicial, proibindo o tribunal de decidir sobre a constitucionalidade de certas leis e regulamentos e concedendo ao Knesset o poder de anular qualquer decisão judicial por um simples maioria.

A ideia do governo era aprovar a reforma judicial em dois meses, mas a sociedade reagiu e tem realizado grandes protestos todos os sábados, que reúnem milhares de pessoas. “Já houve manifestações com cerca de 500 mil pessoas, equivalente a quase cinco por cento da população israelense. É como se 10 milhões de brasileiros fossem às ruas em um mesmo dia para protestar contra o governo. A sociedade israelense tem demonstrado muita força, determinação e resiliência”, disse a correspondente brasileira em Israel.

“Se a reforma da Suprema Corte for aprovada, princípios fundacionais do Estado de Israel estarão sob risco, como os direitos das mulheres, das minorias, dos mais oprimidos e invisibilizados”, disse Ruth Goldberg.

Em diversos momentos da história, a Suprema Corte de Israel tomou decisões contramajoritárias, inclusive em defesa dos direitos dos palestinos que vivem nos territórios ocupados, e é considerada um dos pilares da democracia israelense. “Se o Legislativo e o Executivo (Israel é um regime parlamentarista) passarem a controlar a Suprema Corte, a ideia de que Israel pode ser ao mesmo tempo um Estado judaico e democrático pode cair por terra”, explicou Kresch.

A correspondente descartou que o atual conflito leve a uma guerra civil, mas disse temer um aumento da violência política entre grupos favoráveis e contrários à reforma e ao governo de extrema direita. “A água está fervendo e podem ocorrer enfrentamentos entre grupos que, cada vez mais, veem seus adversários políticos como inimigos. Lembremos que, em 1995, um extremista judeu, descontente com os Acordos de Oslo (1993), assassinou o então primeiro-ministro Yitzhak Rabin, chocando o país e o mundo e prejudicando irremediavelmente o processo de paz israelo-palestino. Com o atual grau de polarização, pode haver uma explosão de violência interna, algo com o qual a sociedade israelense não está acostumada”, disse.

“Se a reforma da Suprema Corte, pilar da democracia israelense, for aprovada, princípios fundacionais do Estado de Israel estarão sob risco, como os direitos das mulheres, das minorias, religiosas ou não, dos mais oprimidos e invisibilizados. Também haverá prejuízos à segurança nacional, às relações multilaterais e à economia israelense”, disse Ruth Goldberg, presidente do Instituto Brasil-Israel. 

“Na condição de representante de judeus da diáspora no Brasil, afirmo que o impacto desses acontecimentos recentes também se projeta sobre nós. Em nome do IBI, registro a nossa indignação e descontentamento com o que está acontecendo e me solidarizo com a sociedade israelense, que há nove meses vem dando demonstrações de sua pujança democrática, determinação e resiliência”, continuou.

Corte Suprema garantia ‘equilíbrio precário’ na convivência entre
judeus seculares e religiosos em Israel

Para o sociólogo Bernardo Sorj, nascido no Uruguai e radicado no Brasil há cinco décadas, Israel vive dois desafios inter-relacionados, que são produto de um longo processo histórico. O primeiro é a relação entre Estado democrático e religião, o segundo entre democracia e a ocupação dos territórios palestinos.

O ex-professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro lembrou que o sionismo surgiu no final do século 19, impulsionado por setores seculares do judaísmo europeu influenciados pela ascensão do nacionalismo na Europa. “Foi um movimento ao qual se opôs a maioria das correntes religiosas do judaísmo, em particular os ortodoxos. A razão era simples: para os judeus ortodoxos, o destino do povo judeu se encontrava nas mãos de Deus e este deveria esperar a chegada do Messias para redimir a Terra de Israel. O movimento sionista tinha uma relação tensa com boa parte dos grupos  religiosos, mas como as identidades nacional e religiosa estiveram amalgamadas por quase três milênios, a dissociação entre elas sempre foi parcial”, explicou. 

Segundo Sorj, a Declaração de Independência do Estado de Israel, assinada em 14 de maio de 1948 em Tel Aviv, expressa essa ambiguidade, destacando em seguida dois trechos (em tradução livre): 

- “A Terra de Israel foi onde o povo judeu nasceu. Aqui, sua identidade espiritual, religiosa e nacional foi formada. Aqui, eles conquistaram a independência e criaram uma cultura de importância nacional e universal.”

- “O Estado de Israel terá como base os preceitos de liberdade, justiça e paz ensinados pelos profetas hebreus; defenderá a total igualdade social e política de todos os cidadãos, sem distinção de raça, credo ou sexo; garantirá liberdade total de consciência, culto, educação e cultura...” 

Em suma, o documento fundacional do Estado de Israel afirma a identidade nacional e a religiosa como elementos separados mas que são partes do mesmo conjunto, assim como afirma princípios comuns a toda democracia moderna, como a liberdade de consciência e religiosa. 

“Na prática, a relação entre ambos os componentes se mostrou tortuosa. Imediatamente após a independência, o novo Estado judeu foi desafiado militarmente por seus vizinhos árabes e a legitimidade da presença judia na Terra de Israel passou a ocupar um lugar no espaço público nacional e internacional maior do que seria de esperar em circunstâncias mais pacíficas, obrigando Israel a enfatizar suas raízes históricas e bíblicas”, disse Sorj.

O sociólogo lembrou que, desde os primeiros anos de existência do atual Estado de Israel, as autoridades transferiram a grupos religiosos ortodoxos poderes questionáveis em uma democracia: “Em particular foram cedidos ao rabinato ortodoxo poderes em relação a partes do código civil, o controle de lugares sagrados e cemitérios públicos, de processo de conversão e da comida kasher.”

Esta situação, em si mesma problemática, passou a sofrer uma metamorfose – que Sorj comparou a uma “metástase, desde o ponto de vista democrático” –  a partir da ocupação em 1967 dos territórios palestinos na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, assim como de Jerusalém Oriental, ocupação que perdura até hoje, sem perspectiva de ser resolvida. 

“Se a postura de Israel após a Guerra dos Seis Dias tivesse sido a de manter a ocupação desses territórios pelo tempo necessário para uma futura negociação com os palestinos e os vizinhos árabes, a decisão teria sido questionável do ponto de vista do direito internacional, mas sem maiores consequências internas. Mas sucessivos governos israelenses apoiaram a formação de colônias nos territórios ocupados, que se tornaram a ponta de lança de grupos nacionalistas extremistas seculares e resultaram na expansão de grupos religiosos com uma leitura messiânica do sionismo”, disse.

Passados 56 anos, cerca de meio milhão de colonos judeus vivem na Cisjordânia e mais de 200 mil habitam em Jerusalém Oriental. Os assentamentos judaicos nos territórios palestinos são hoje um dos maiores obstáculos à chamada “solução de dois estados”, que propõe a coexistência de dois Estados independentes, Israel e a Palestina, muito próximos um do outro, praticamente entrelaçados. 

Para Sorj, a convivência entre judeus seculares e religiosos em Israel, ainda que tensa, mantém um equilíbrio precário assegurado, de alguma forma, pelos amplos poderes da Suprema Corte de Israel. É exatamente esta independência em relação ao Parlamento e ao governo de plantão que está agora em xeque, com a reforma judicial proposta pelo governo Bibi Netanyahu e seus aliados de extrema direita e ultraortodoxos.

“O ataque à Suprema Corte soou o alarme entre os judeus seculares, grupos de classe média, com nível educacional mais elevado, ressentidos com a postura dos ultraortodoxos e preocupados com seu peso demográfico crescente na sociedade israelense. Essa reação de parte da cidadania à reforma do Judiciário se deu à margem dos principais partidos políticos que, como na maior parte do mundo, estão enfraquecidos e desmoralizados. Semana após semana, há quase um ano, dezenas de milhares de pessoas saem às ruas para se manifestar em todo o país. É de fato impressionante”, disse.

“A crise atual, além dos fatores conjunturais que levaram o primeiro-ministro Bibi Netanyahu a formar uma aliança que ameaça a coesão social e o futuro do país, expressa desafios  profundos que a sociedade israelense vai ter de enfrentar, seja da relação entre democracia e religião, seja em relação à ocupação permanente dos territórios palestinos”, concluiu o palestrante.

Parte da extrema direita europeia tem o Estado de Israel como
um modelo a ser seguido

Há vários anos, o etnógrafo norte-americano Benjamin R. Teitelbaum, professor da Universidade do Colorado em Boulder, estuda as ideologias de extrema direita no mundo, pesquisa que resultou no livro “Guerra pela eternidade: O retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista”, publicado no Brasil em 2020 pela Editora da Unicamp. Em sua fala, ele buscou mapear esse fenômeno em expansão, dividindo-o em três grupos ou categorias: os revolucionários, os populistas, e os antimodernistas (veja os detalhes de sua apresentação no vídeo integral do debate).

Embora ele não tenha analisado especificamente a atual crise israelense, Teitelbaum salientou a diferença do lugar que Israel ocupa em duas correntes distintas da extrema direita europeia: para a extrema direita que se pensa como a defensora do iluminismo ocidental contra as trevas islâmicas, Israel é uma ilha de civilização rodeada pela barbárie; já a extrema direita reacionária gosta de Israel porque vê ali um Estado etnorreligioso, em embrião, vinculado à tradição judaico-cristã. 

“Muitos adeptos da extrema direita na Europa olham para Israel e dizem ‘ahaa, eles têm aquilo que nós desejamos’. Uma sociedade cuja identidade e religião são a cola eterna, permanente e transcendental que a mantém coesa”, afirmou.

Segundo Teitelbaum, esse tipo de pensamento tem grande aderência junto a partidos e movimentos nacionalistas europeus em países como a Dinamarca, a Suécia, a Holanda e até mesmo a Alemanha. “Na Holanda, por exemplo, o Partido pela Liberdade (terceira força política do país) diz lutar por valores e princípios democrático-liberais ameaçados por imigrantes, sobretudo os muçulmanos, que não prezam pela democracia e pelos direitos humanos (segundo o partido). Não é à toa que o partido incorporou à sua agenda os direitos dos LGBTs e das mulheres.”

“É verdade que, na Europa, há também grupos neonazis que sempre odiaram os judeus, mas eles não representam o futuro da extrema direita no continente. Os grupos que têm mais possibilidade de chegar ao poder são pró-Israel e estão de olho no que acontece no país”, concluiu.


Assista ao vídeo do webinar na íntegra. 


Leia também:

A força da extrema direita nas redes sociais: ideologia e estratégia

Como as democracias morrem: os desafios do presente - Por Steven Levitsky

A ideologia por trás da extrema direita no Brasil e no mundo - Por Benjamin Teitelbaum

 

Saiba mais:

Cadastre-se gratuitamente para ler o “Journal of Democracy em Português” e leia o artigo “Por que a direita abraça os direitos dos homossexuais”, publicado em junho de 2023.

Baixe gratuitamente o livro “Identidade e crise das Democracias”, de Bernardo Sorj, publicado pela Plataforma Democrática.

 

Otávio Dias é editor de conteúdo da Fundação FHC. Jornalista especializado em política e assuntos internacionais, foi correspondente da Folha em Londres e editor do site estadao.com.br.  

 

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